Boleia

18-11-2010 11:46

"Apesar de estar escuro, a pequena lua conseguia passar alguma luz através das nuvens que dançavam no céu. O negro do carro reflectia essa luz, adquirindo um brilho malicioso e completamente fantástico. Aquele carro apenas passava uma mensagem: Entra e reza pela tua vida! Dirigi-me para o lado do passageiro e procurei, sem sucesso, o puxador para abrir a porta. Dei um passo atrás quando esta começou a abrir por vontade própria. Baixei a mão que usara para a tentar abrir, e olhei para o Eduardo.

- É seguro entrar? – Perguntei em tom de brincadeira, acompanhando a pergunta com um sorriso forçado.

Eu sabia que não me estava a sentir completamente segura ao entrar para o interior daquela ”amostra” de carro. Parecia que acabava de entrar numa cena de um daqueles filmes de corridas de carros, onde no final alguém morre esmagado ou queimado num acidente estúpido. A diferença era, que aquele nem precisava estar “artilhado” para impor respeito a quem quer que lhe quisesse fazer frente. A sua imagem já era suficientemente intimidante, pelo menos para mim. O seu aspecto desportivo era uma afronta para qualquer outro carro que circulasse na rua. As linhas impecavelmente desenhadas para lhe conferir um aspecto único e veloz. Aquele seria, sem dúvida, o meu carro de eleição numa outra vida. Não consegui decifrar a marca tatuada na traseira do carro, mas provavelmente nem saberia a qual fabricante pertencia.

- Claro que sim. – Respondeu com o mais simpático dos seus sorrisos à Hollywood e entrou para o interior do carro.

Acomodou-se no assento em pele preto, moldado para encaixar no seu corpo perfeito. Aquela era, sem sombra de dúvida, uma das combinações mais extraordinárias que alguma vez já vira. Homem e máquina em perfeita harmonia. Com um gesto subtil, encorajou-me a entrar para o seu super excêntrico carro. Assim que me deixei afundar no assento, senti um conforto fora do normal, como se aquele lugar também tivesse sido desenhado à minha medida. Uma sensação familiar tomou conta de mim e senti um desejo selvagem de abraça-lo e beijá-lo. Respira, Susana! Pensei, fechando os olhos e tentando tirar aquele apetite voraz da cabeça.

- Confortável? – Perguntou.

- Sim. – Respondi sem prolongar mais a conversa. Já era suficientemente embaraçoso o facto de estar a ter pensamentos menos próprios com aquele homem. Falar com ele só iria agravar mais o meu estado repentino de falta de afecto.

 

- Parece nervosa! – Insinuou, olhando para mim e deixando que a luz do tablier ilumina-se apenas um lado do seu rosto, tornando a fronteira que nos separava cada vez mais susceptível a ser quebrada.

- Ah, não! É impressão sua! – Tentei olhar para a frente evitando que me engasgasse  com os meus próprios pensamentos. Ele sorriu e focou a sua atenção em sair do estacionamento.

Com um pequeno toque num botão escondido ao lado do volante, o motor do carro rugiu entoando na noite deserta. As luzes iluminaram o caminho e em menos de dez minutos estávamos a estacionar ao lado do meu carro. Podia jurar que ele sabia perfeitamente qual ele era, visto ter estacionado mesmo ao seu lado. Mas, por exclusão de partes, achei melhor atribuir o acontecimento a uma coincidência, pois o único lugar livre naquele estacionamento era o espaço ao lado do meu carro.

Sem grandes demoras, lancei um sorriso rápido e procurei o puxador da porta, tentando não cometer mais nenhuma cena triste que me colocasse no patamar do ridículo. A viagem foi curta e não deu lugar a conversas mais elaboradas e eu queria honrar o fim dela da mesma forma.

- Obrigada pela boleia. – Tentei manter o sorriso a um nível normal enquanto saía do carro.

- De nada, Susana. Foi um prazer. – Olhou para mim com uns olhos brilhantes que pareciam ter mudado de cor com o reflexo do candeeiro que pairava sobre nós. – Não que seja pelas melhores razões, mas, espero vê-la amanhã. – Mal terminou de dizer aquelas palavras, mostrou o branco dos seus dentes como de habitual. Deixei que a porta do carro se fechasse e dei um passo para trás. Fiquei a observá-lo, enquanto voltava o carro e seguia caminho. Ainda meio atordoada com o calor a subir pelo corpo, procurei a chave do carro algures perdida no interior da minha mala. Olhei para ele e era inevitável não começar a rir. Tinha acabado de sair de dentro de um protótipo de valor inestimável, com um condutor de fazer rasgar a própria pele só para não lhe saltar para cima e agora limitava-me a ficar sozinha, abandonada ao pé da minha humilde relíquia do século dezanove. Hilariante! "

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